segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

MIL NOVECENTOS E SESSENTA E TANTOS

Mil novecentos e sessenta e quatro.
Mil novecentos e sessenta e tantos
motivos para fazer poesia,
azia, antro, pó,
fagia.
Mil novecentos e sessenta e tantos
cantos, escondidos nas coxias,
atrás das cortinas, sob neblinas,
nas entrelinhas.

Faca amolada, tesoura cega
cortando o sonho, matando
a sanha dos resistentes.
A senha, qual é a senha,
qual o sonho que se esconde
atrás de portas fechadas
fachadas de aparência
onde se tramavam lutas
onde se urdiam tramas
dos novos inconfidentes?

Mil novecentos e sessenta e quatro,
sessenta e cinco, sessenta e seis,
sessenta e tantos, e tantos a arder
no fogo, no jogo do não deixar
morrer o sonho e a vontade
da liberdade roubada. Cortada.
Cassada na noite. Caçadas na noite,
calçadas atropeladas
por tropéis de ensandecidos.

E a poesia resiste. Insiste. Persiste.
Mostrando em seus labirintos
o oco do mundo, o podre do mundo,
o fundo do odre, o opaco, o ocre,
o acre cheiro de mofo
dos porões.
A Poesia: azia, acidez, na aridez
no deserto das idéias,
nos oásis dos ideais,
transmutada em linhas tortas,
curtas, fartas, toscas, foscas,
brilhando nas entrelinhas
qual estrelinhas
aos olhos que sabem ver.

Palavra atrai palavra
na mão do poeta anônimo:
palavra que é ferro e brasa
palavra que é freio e farra,
que vai à forra, que diz de brisa
e de tempo novo, e que avisa,
um dia inda vai chegar.

Mil novecentos e sessenta e quatro
e tantos e quantos e santos
motivos para fazer poesia
para lutar contra a noite
querendo engolir o dia.

Mil novecentos e noventa e tantos:
quantos cantos, tantos prantos
já passados.
E a poesia resiste
como esfinge, ainda hoje,
Não à aridez dos desertos
de então,
mas à acidez deste tempo
mal passado
de desespero, de vazio
e solidão.

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