sábado, 18 de outubro de 2008

ELE.ELA.ELES


CENA I
A paisagem se desdobra à minha frente
feita de brilhos e barulhos matinais.
Mas não me importo. Não me interessam
estas mornas tardes outonais.
Em meu peito chove. Rugem vendavais.

CENA II
Ela não. sente-se sozinha senta-se no vão da escada e começa a pensar. pensar.
“Eu me perco na minha própria perdição. Ando muito desligada, buscando trilhas, maravilhas e não vejo a vida que corre ao meu lado, cobrando, cobrando, feito cobra serpenteando ora fria ora quente o bote armado... Nada me importa e a viagem não tem fim. Fui. Fim. “

Ela lembra os velhos filmes e os desgarrados personagens de Nazarin e os figurantes do banquete dos mendigos. Putas, abandonados, cães vadios saídos dos becos de Brecht, gente sofredora que desfila por seus olhos pedindo uma chance de se mostrar, de se revelar, de poder soltar os seus clamores.

CENA III
Ele deitado. Na cama um tédio sem remédio. Ontem foi sexta e ele só chegou no sábado noite selvagem sexo sexo sexo foi amor foi paixão? Não, foi só tesão acumulado, desejo de outro corpo, desejo estimulado pela mídia e pelo vício álcool na veia paraísos artificais que luta o que é que eu busco afinal onde é que eu vou para que estou aqui? São tantas e tontas perguntas e a vida corre, sorry. a vida corre, a noite escorre, o mundo é um grande porre, cadê as adocicadas lovistoris onde é que eu entro nesta história? Cansei, dancei.nem sei. Penso e lanço meus medos ao espaço e meus medos me invadem e se materializam e voam, soltos nos ares, feito vampiros feito nosferatus desilsudidos e desesperados querendo sangue mas muito mais que sangue querendo afetos e afoitos se desintegram aos primeiros raios de sol e aos mínimos sinais de carinhos ou caricias em suas faces túrgidas e lívidas de habitantes da noite. Ah, que pesadelos são estes que agora me atormentam?

CENA IV
Ela no vão da escada. Ele, deitado na cama, em seu tédio sem remédio, ouvindo canções que não se usa mais, valsas vienenses, bosques de imperadores, se esta rua fosse minha ah, eu mandava te buscar... foda-se, eu quero e gosto das canções antigas... ah, que tédio estes baticuns de hoje em dia....

Ela se levanta do vão da escada, borra boca de baton. Vermelho vivo, como a vontade de se entregar ao primeiro cara que encontrar pela rua. Ela se levanta e vai ao encontro do destino. Que destino? Ele, o cara do tédio sem remédio, das músicas que não se ouve mais do sexo selvagem que não tem a ver com paixão e com amor? Ele mesmo.
Ele, a esmo, sai da cama e se veste, feito um robô. Bota a bermuda. A cena muda.

CENA V
Um encontro romântico nos bosques de Viena ao som de strauss longos vetidos brancos rodopiando sonhos enquanto vampiros negros nosferatus e dráculas sobrevoam os salões guardiões do cara do tédio. Ele. Ela. Eles. E daí?
Daí, há de sair alguma coisa de concreto sangrando a cena, alguma carícia mais afoita, uma noite de prazer, duas ou três noites de trepadas, sim, e daí? A vida é só isso aí?
Onde ficam os sonhos, os devaneios, as buscas, a esperança, a estrada de tijolos amarelos e os castelos de sissi e o palácio de esmeraldas e os poderes do anel?
Onde os poetas podem colocar seus versos e seus segredos se não perdurarem sonhos e paragens outras, além, muito além?
Não podem.
Ele. Ela. Eles.
E ávida a vida é assim. Seca.
Nua. Crua.
Assim.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

MATE UM ANJO


foto Today by "brilho-de-conta"- flickr

I

Atenção: Foi visto, revoando sobre a cidade, um bando bêbado de anjos, banjos voadores espalhando música, espalhando pânico, espelhando medo: um bando trôpego de seres, de longos cabelos verdes, cantando canções antigas como diamantes virgens. Não há como escapar aos desatinos desta raça, que se reproduz como os insetos. Incertos serão os nossos dias e drásticos nossos rumos, se não matarmos os anjos. Não há como se enganar: são pálidos, brilham , à noite parecem estrelas e de dia flocos de algodão, nuvens vagabundas vagando no céu. E os cabelos são verdes, tão verdes que os olhos doem. Não olhem para eles. Seus olhos fosforecentes transmitem uma força mágica que transforma aqueles que os encaram. Arrebatam-nos para o seu bando, carregam-nos, alteram-nos.
Atenção: Se avistar um bando de anjos, ou mesmo um único anjo, não duvide: mate-os no mesmo instante. Não tente dialogar, pois eles são ardilosos e trarão, nos braços, cestos cheios de promessas e doces ilusões. Dançarão valsas antigas, cantarão cantigas de outros tempos, tendo ao fundo auroras boreais. Cantarão rocks e baladas de acridoce sabor, convidando à viagem: quererão levar-nos a passear em caudas de cometas, com destino a verdevermelhos campos de morango para sempre, e nos seus cabelos verdes banjos irão se tocar: banjos loucos irão se tocar, corda a corda, dessfechando mortíferas canções sobre nossas cabeças. E eles buscarão morada em nosso ser: serão ardorosos e quentes, apossando-se de nossos velhos corpos. Pulsará então, em cada esquina, em todas as esquinas, o coração, canção mais que cantada onde a vida se fez, se faz e se fará. Em velhos blues, o grito que jaz na garganta e o que explode no rock alucinado.
Atenção: armas estão sendo distribuídas, para que não sejamos destruídos. Informamos, a todas as pessoas responsáveis, que cabe a nós a defesa das nossas vidas, das nossas instituições. Não se deixem tentar, não ouçam seus cantos de sereias, ondinas chamando para a morte camuflada em vida e prazeres, vagando na espuma. Se virem os anjos, matem-nos. Nem sempre andam em bandos, por vezes voam sozinhos buscando seduzir aqueles que estão também sós, aqueles que vivem à procura de mais alguma coisa. A estes, apelamos: não há nada mais para se encontrar , tudo que é necessário encontra-se aqui, nada existe além de nossa esfera, tudo é ilusão. Não se deixem levar pelos anjos, que têm por missão corromper-nos e tumultuar nosso ambiente. Às armas! Não deixemos que invadam nossa intimidade, nem que nos toldem a vida. Matemo-los, primeiro! Ou eles nos exterminarão.

II

Onde a vida se fez, se faz e se fará, em cada esquina do mundo , no canto de cada poeta, na corda de cada guitarra, em cada uivo desesperado retumbando pelos quatro cantos da terra, dos céus e dos infernos, o anjo persistirá, e o banjo destruidor será tocado, tocando nossos corpos amortecidos com sua luz de grande intensidade. Serão ouvidos gritos repetidos, velhos blues voltarão pela noite, o rock alucinado pairando no ar como gotas, os velhos e novos cavaleiros quatro para sempre convidando a ver a vida que se encolhe sem jeito, não onde brotou o rock nem o grito desesperado do poeta, mas onde a mão incongruente traçou a linha e onde o grito fez-se ouvir, mas lancinante como o corte de espadas que calou as medusas líricas tísicas e pálidas: lembranças de lua, cadernos de viagem, domésticas alucinações: e o inferno pulsando, ao nosso alcance. E o céu, abrindo as comportas, convidando, convidando: A viagem no dorso dos poetas, dos profetas e dos mitos. O grito desesperado, a dor cortante, o céu e o inferno estão aí: os anjos sabem.

III

Eu fui tocado pela mão do anjo. Tu foste atingido pela luz do olhar do anjo. Nós nos transformamos, pela força da música que sai da boca dos anjos. Os anjos: suas mãos pálidas, seus longos dedos, suas noites de vigília. Sua insônia, seu momento criador, criaturas híbridas adensando-se na mente e no coração, ocupando o espaço, o tempo e a memória. Nós nos superamos quando, desobedecendo às ordens estabelecidas, encaramos os anjos, não com o medo a nós transmitido pela maioria, mas com a coragem de encarar coisas novas. Nós os resgatamos, do limbo a que estavam proscritos e os recriamos. Sim, encaramos e não nos arrependemos. Nós desobedecemos, comemos o fruto proibido, por isso somos e sabemos agora o porquê de tanto medo, de tamanha repressão. Os anjos incomodam, pela carga que trazem do novo; nós não tememos o novo, entretanto. Queremos romper as cascas, as couraças, ganhando novas alturas, sem medo das turbas e das tumbas ancestrais.
Nós não matamos o ano, nem por ele fomos mortos. Nós nos transformamos, e sabemos que dos ácidos verdes cabelos dos anjos, anjos outros hão de se criar, reperoduzindo a incoerência, fazendo crescer o não comum. E das valas da vida diária, destas valas apodrecidas em que temos vivido, um fulgurante brado surgirá rasgando a madrugada, quebrando as vidraças, destruindo para recriar. E os mortos gritarão, incomodados. Gritarão em uníssono, contra esta avalanche de coisa nova, de sangue novo que vem interromper seu sono de milênios.
Eu sei, nós sabemos.

IV

Eles estão conseghuindo. Estão conseguindo! Temos que nos mobilizar contra esta praga que a nós todos perturba. Estão roubando nossos jovens, que se rebelam e pregam contra nós. Eles são poucos, nós somos muitos, mas não estamos conseguindo! É necessário que acabemos com eles; para isso vamos intensificar a caçada. Não permitam que se aproximem, pois contaminam os locais por onde andam. Não há remédio para este mal.
A cidade inteira está em gritos, em pânico com a invasão dos anjos intrusos. Pelos inúmeros alto-falantes, espalhados pelos pórticos das moradias, a voz retumba, sonora e vingativa, clamando contra os invasores. Os habitantes abandonam suas casas, invadem as planícies, as montanhas, os topos das árvores e os fundos dos rios e do mar, procurando pelos anjos que podem assumir formas várias: são nuvens de algodão hoje, pássaros amanhã; ora são peixes, ora pedras. São frutos que se ocultam no mais alto das árvores, até vento são. E as pessoas abandonam suas casas, rumo à caçada, à árdua luta contra aqueles que estão em toda parte, onipresente ameaça. E a voz se eleva, cada vez mais soturna e áspera, conclamando ao extermínio dos intrusos. O que se vê então é uma incansável guerra contra tudo: florestas sendo derrubadas, nuvens bombardeadas, pássaros eliminados, peixes asassinados, pedras pulverizados. É a loucura coletiva que se apossa da multidão, destruindo tudo à sua volta, tentando livrar-se dos anjos, do feitiço dos cabelos verdes que geram diamantes e que convidam para aincríveis viagens cavalgando nuvens, que cantam de paradisíacos campos onde a poesia brota, cresce e se avoluma, transpirando pelos poros da vida, poema do dia a dia.

V

Eles, no entanto, reproduzem-se como os insetos e no pulsar de suas asas pulsa o sangue da vida, pulsa o novo: são crisálidas, grtávidas de luz, transformando os habitantes em fogueiras vivas. Dos seus cabelos verdes anjos outros hão de se criar, apesar da caçada insana. A idéia do anjo, guardada em sua pluriforma é a sua própria essência: não há como escapar à magia desta raça.

VI
Eu ouço falar de anjos, ouso falar de seus verdes cabelos e dos dimantes que brotam, virgens, de suas gargantas. E da luz irradiada pelos seus olhos. Além deles, o que nos resta? Uma cidade revolvida, florestas destruídas, rios secos, céus de chumbo, pássaros mortos, gente e gente cansada tentando eliminá-los. Numa luta inútil, já que eles não desistirão.

VII
Atenção: Declaramos cessada a temporada de caça aos anjos. Reconhecemos que nossos esforços foram inúteis;não há como detê-los e já não nos importa o que possa acontecer. Não sabemos que rumos tomar, sabemos apenas que incertos serão os nossos dias e drásticas nosssas vidas. Mas, definitivamente, não há como escapar aos desatinos e fascínio desta raça, que se reproduz como os insetos, derramando sobre nossas cabeças imagens candentes de sonhos, que há muito havíamos suprimido. Resta-nos apenas o retorno às nossas habitações, sentindo no ar este acre odor poesia e de música, penetrando em nossas carnes como adagas frias e impiedosas: estas marcas do anjo.



sobre a obra
texto escrito em 1983, inspirado por um grafite " Die Angels" e por um verso de Rilke, in " Elegias de Duino"

"Quem, se eu gritasse, eentre as legiões do Anjos me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos? Todo Anjo é terrivel. E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo do meu soluço obscuro"