quinta-feira, 29 de outubro de 2009

fábula


foto: fruit and fly - shioshvilli/flickr

Pois eu danço
E bebo e canto
Até que brusca mão
Me espanta.
(William Blake – A Mosca
)


Eu,pecador, absoluto em meu pecado, todo poderoso construtor dos meus desvarios, confesso-me a mim. Persigno-me, persigo-me, prossigo nesta impossível impassível jornada, trama indecifrável. Eu, pecador, crivado pelas setas e espinhos da dúvida, indivíduo no mundo, persigo meu sonho. E meu sonho intromete-se em minha vigília, soltando no ar os seres que povoam minha mente.

...Assim estava, assim pensava ele, abandonado ao tépido calor daquele vinho, naquele fim de tarde, jogado sobre a poltrona, quase a dormir, naquele profundo retalhar de coisas antigas, de crenças antigas, naquele ato de dissecar as próprias dúvidas, a própria vida.
De repente, ouve um zumbido e o barulho de vida próximo a ele. É uma mosca, que ronda o ar, ao redor da fruteira. Ali estão as peras, que adormecem e apodrecem seu marasmo , lassidão, solidão e abandono. A menos que uma mão faminta tome-as, levando-as à boca para saciar a fome, elas ali permanecerão, eternamente em seu marasmo, apodrecendo.
Ele observa a mosca, que zumbindo em círculos aproxima-se da fruteira. E se admira ao ver seu vôo bonito, concêntrico, o brilho refletido em suas asas azuis quando o sol rebate nelas diretamente. Acompanhando com o olhar vê quando ela, finalmente, pousa sobre as frutas. Como que magnetizado, sente-se penetrar na realidade daquele inseto, que agora passeia sobre a superfície dourada da pêra; ele agora é a própria mosca e passeia sobre a fruta, sentindo toda a carícia do veludo sob as patas, a tepidez dourada provocando arrepio nos pelos.

Prepara-se para sugar todo o seu sumo, sua seiva. E exatamente quando começa a gozar as delícias de sua empreitada, desvia os olhos para cima, deparando-se com um magnífico azul violáceo , um sol que a convida a viagem rumo a outros ambientes. E ela imagina milhares e milhares de novos frutos, antecipando delícias de paraísos inimagináveis. E se divide: não sabe mais se se entrega ao doce ofício de sugar a seiva da dourada pêra ou se levanta vôo em busca de outras paragens. E se debate entre, e se confunde, não percebendo a pesada m~´ao de alguém que se abate sobre ela, que agora está tombada, inerte sobre a fruta.

... Quando sentiu a tragédia, voltou a ser ele próprio, sentindo as forças esgotarem-se nos estertores da morte. Novamente é ele o observador, e observa a cena: as peras continuam na fruteira, no mesmo lugar a mesa e a toalha, as flores, a sala, ele e seus olhos. Tudo permanece, como sempre, apenas a mosca está morta e já não faz mais parte do ambiente. E no entanto, nada mudou. Todo o conflito que viveu, todo o seu angustiante dividir-se, tudo é acabado. O mundo permanece, indiferente à sua morte, à sua queda. O seu pequeno mundo, feito de uma sala, de uma mesa e de uma fruteira cheia de peras, que continuam adormecidas, apodrecendo sua solidão e seu marasmo nas tardes quentes.

Silenciosamente, pé ante pé, como se cumprisse um ritual, ele se levanta e se aproxima da fruteira. Com a ponta dos dedos retira cuidadosamente o inseto, e sem uma sombra de qualquer sentimento no rosto, atira-o na cesta de lixo, seu último reduto.

Eu, pecador, absoluto em meu pecado, todo poderoso construtor dos meus desvarios, confesso-me a mim. E jogado sobre a poltrona, nestas tardes monótonas e quentes, pressinto e antecipo a queda da próxima mosca, e o ranger de dentes das peras, deixadas solitárias na fruteira.

Do Livro “ O DEVORADOR DE PALAVRAS” -Brasília, 1982

3 comentários:

nina rizzi disse...

as fábulas e nós -nadas, vamos-nos atando e assim sendo tudo.
e tudo passa de literatura?
eu como os teus escritos, vc sabe.

Adriana Godoy disse...

Danilo, gosto tanto de seus textos. Esse foi um dos que mais gostei. Beijo.

RUBENS GUILHERME PESENTI disse...

Danilo, meu chapa, estou respondendo aqui ao seu comentário em meu blog, pois vou dar uma boa sumida da net. Vou ver outros caminhos e possibilidades e, quem sabem uma outra hora continuo o poemastigando.
Caramba, muito obrigado pelas palavras. Isso é um carinho imenso!
O fato de você ser mais prolixo não significa o "pro lixo", pro lixo é o prolixo vazio, rasteiro e desnutrido. E sabemos que você não se encaixa nessa categoria.

Abração, meu amigo.