Hoje acordei meio down, deixando as memórias afluírem em mim como geisers lá do fundo da alma, lá dos cantos recônditos do coração. Estive pensando, engraçado como o passado não passa, ele é como um rio circular, cujas águas correm, ciclicamente, ora em redemoinhos, ora em calmarias, refluindo todas para os mesmos lugares: as nossas vidas.
Sim, esta imagem do rio circular não me sai da cabeça, yin e yang, a cobra mordendo o próprio rabo, o oito do infinito, tudo, tudo, refluindo, voltando, tudo armazenado em nosso cérebro, este computador poderoso de não sei quantos milhões de gigabytes.
É, a memória é mesmo essa arma poderosa, e as lembranças e saudades são sua expressão mais bela...Falando assim , vou deixando fluir o meu rio interior, lembrando-me de tantos fatos, mas principalmente da vida ao lado do meu pai, Antônio de Abreu Lima, que já se foi há quase dez anos... Dez anos que parece não passaram, são as eternas ondas, as eternas águas do rio... uma vez escrevi um poema onde eu dizia:
Minha memória é um rio
De onde fluem as lembranças
E as emoções
É o porto onde me aporto
É o laço onde me aperto
É o leito onde desperto
Das minhas indagações.
Meu pai era uma figura ímpar, de um beleza interior rara. Para ele, não havia problemas que não pudessem ser resolvidos, não havia pobre ou rico nem preocupação com aparências. Ele cuidava de todos e atendia a todos da mesma maneira, a todos dava sua atenção, contava seus casos de mineiro, dedicava seus dedos de prosa e cantava suas marchinhas que ele adorava compor e cantar, a todo momento, quando encontrava audiência disposta a ouvi-lo.
Ele era um poeta, desses que viam poesia em tudo, para quem a vida era uma festa constante e que valia a pena viver a cada segundo. Lembro-me de quando eu era pequeno, e ele me contava estórias engraçadas, de festas a que ia na roça, e que na volta vinha trazendo docinhos e comes e bebes para nós, crianças que havíamos ficado em casa, mas que foi atacado por uma onça, na trilha, ou por uma cobra, quando atravessava uma ponte, e que as guloseimas caíram e que nós ficamos na saudade.
Lembro-me ainda de momentos mais distantes, quando ele cantava para mim, que ainda era pequeno, canções de ninar que ficaram na minha memória e que não esquecerei jamais. Havia uma que dizia assim “ O porquim chinês, o porquim ladrão, o porquim dourado foi-se embora pro sertão”. Outra, cantava “ Balão custa dinheiro, dinheiro custa ganhar, arreda papai, arreda mamãe, deixa o meu balão passar”.
E passaram-se os anos, e a gente cresceu. Colégio, depois o primeiro emprego, e a saída de casa, para morar na capital. Meu pai, sempre cuidadoso, sempre zeloso. Quando eu voltava a vê-lo, semana sim, semana não, ele sempre me esperava no ponto de ônibus, na chegada, sempre me levava ao ponto, na despedia. E era um carinho assim inusitado.
A gente foi crescendo, a vida passando, faculdade, idade madura, namorada, casamento, filhos, para o meu pai eu era sempre o seu menino. E ele adorava me elogiar com seus companheiros, contava do filho trabalhando em Brasília, num bom emprego. E adorava a Terezinha, minha esposa, e ainda brincava com ela, dizendo-lhe que quando ela havia nascido, a mãe dela Dona Rita e ele haviam combinado que nós dois, os filhos, estávamos destinados um para o outro, e que nos casaríamos um dia. E dizia para ela: Você é minha nora favorita.
Eu tinha com meu pai uma simbiose perfeita, uma comunicação não verbal, de alma, pois eu sempre gostei de meditar, de divagar, de escrever, de poetar, desde lá dos finais dos anos 60. Sempre adorei música, e meu pai era ligado também na poesia e na música, mas de uma forma muito popular, nada sofisticado nem erudito. E nós juntávamos nossas vozes, diversas vezes, e cantávamos juntos, e eu gravava cassetes em que ele e eu interpretávamos músicas de serestas, como “Elvira escuta”, “ É a ti flor do céu”. Com ele, aprendi um monte de músicas antigas, Carlos Galhardo, Dilermando Reis, Vicente Celestino, e outros mais.
Sempre quando eu ia a Alvinópolis, sentava-me e cantava com ele e meu tio Francisquinho, que era nosso vizinho. Como era bom a gente junto ali, cantando, contando casos... Ah, se o passado não passasse! Porém, o tempo vai passando e a gente nem percebe, ou nem tempo para reparar na sua passagem.
Meu pai foi ficando mais velho, meus filhos já estavam crescidos, e de repente ele começou a fraquejar. Depois de uma cirurgia de catarata, quando teve que tomar vários remédios para não ocorrer infecção, começou a reclamar de vários problemas. E começou ali o seu definhar, o seu murchar. Tonteiras, às vezes tombos, e já aquele ar desligado de quem aos poucos vai penetrando outras esferas, buscando talvez se acostumar com a idéia da partida.
Lembro-me até hoje da última vez que o encontrei com vida. Foi num julho, de 1998, quando fui visitá-lo, nas férias. Passei alguns dias lá, e no dia que vim-me embora ele foi, como de costume , levar-me ao ponto de ônibus. Estava feliz, mas senti nele aquele estranhamento, aquele olhar já perdido no infinito. E viajei preocupado. Engraçado que foi naqueles dias que tirei as últimas fotografias dele em vida. Não me esqueço nunca de vê-lo em frente ao espelho, arrumando o cabelo, ajeitando o bigode, e acertando o chapéu, para que a foto saísse legal. Tirei diversas fotografias dele, mas uma delas, daquele dia, acompanha-me até hoje, ele com seu indefectível chapéu, de perfil, foto que ampliei e coloquei em seu túmulo, grande, colorida, como grande e colorido ele foi em vida.
Meu pai morreu num dia de agosto, mês de triste fama, que para mim tornou-se mais triste ainda. Morreu no dia 4, e com ele enterrei minhas lembranças de infância, minha alegria de juventude. Para ele compus marchinhas, semelhantes àquelas que ele compunha enquanto estava vivo, cantei com ele diversas marchinhas, até fui co-autor em algumas. Compus poemas, buscando aplacar a dor que senti com a sua morte, dia em que chorei e sequei rios de lágrimas.
Realmente, meu pai partiu e levou consigo muito muito de mim. Vê-lo em cima de uma mesa fria de hospital, abraçá-lo, sentir a rigidez de seu corpo e a opacidade de seus olhos foi uma dor inominável para mim. Mas um duro aprendizado, de que a morte chega e não há o que fazer, a não ser aceitá-la e tocar a vida em frente.
Meu pai morreu já há quase 10 anos. Mas nunca me afastei dele; em verdade, nem ele se afastou de mim. Sonhos, foram diversos, de todas as naturezas. Sonhei com ele coisas quase difíceis de explicar como se fossem visões, em que me contava da vida do outro lado, sonhei com ele entre jardins, entre flores, também em situações mais complexas, mas sempre sua presença é uma constante em minha vida.
Hoje, eu sei que o passado não passa e é como um rio de águas circulares e concêntricas. As ondas vão se ampliando, se reproduzindo, mas cada uma sobrevive á outra e se justapõe, se sobrepõe.
Nos meus momentos de dificuldades, de inquietudes, de sofrimentos, mesmo de indecisões, estou sempre a recorrer à sua memória, à sua alma, pedindo discernimento e ajuda. E é um fato incomum, eu acho, sempre me vêem as respostas, as soluções, as ajudas, nunca fico sem respostas quando recorro à sua intercessão.
Meu pai e eu sempre tivemos essa simbiose, este partilhamento, esta intimidade. E a morte dele não interrompeu esta história, apenas colocou-nos em dois níveis diferentes.
...É, o o passado não passa, apenas as ondas se justapõem, se contrapõem, se sobrepõem. Mas jamais extinguir-se-ão, como jamais extinguir-se-á o amor verdadeiro, baseado na intimidade, na afinidade e no compartilhamento de duas vidas.
Brasília, 13/05/2008
Um texto em homenagem ao meu pai, ANTÔNIO DE ABREU LIMA, nascido em 1914 e morto em agosto de 1998, em Alvinópolis-MG, e que me deixou exemplos de vida singulares e lembranças inesquecíveis.
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